A caridade na Umbanda
Existe uma conversa fiada, um romantismo barato, que insiste em pintar a Umbanda como um buffet livre de milagres. Uma espécie de fast-food espiritual onde você chega, faz seu pedido de “caridade” e sai com a vida resolvida no saquinho de papel.
Sinto muito, mas a vida real não funciona assim. E o sagrado, muito menos.
As pessoas chegam ao terreiro com a alma em frangalhos. Chegam depois de esvaziarem os bolsos em consultórios de mármore, depois de acenderem velas de grife para santos de gesso e de ouvirem promessas açucaradas que só lhes renderam mais cáries na alma. Chegam com o navio afundando, gritando por um bote salva-vidas chamado “caridade”.
E a caridade na Umbanda existe, sim. Ela é real, palpável. É a mão do Preto Velho em seu ombro, um peso ancestral sendo aliviado sem que palavra alguma precise ser dita. É a voz firme do Caboclo te dizendo para levantar a cabeça e se portar como o dono da sua própria mata. É a receita daquele banho de ervas que o Boiadeiro te passa no pé do ouvido, um afago na alma que não custa um centavo. Isso é a caridade das giras de direita. O pronto-socorro da alma.
Aí a porteira se abre e a Esquerda chega. A caridade, então, veste outra roupa. Ela vem na gargalhada de um Exu que quebra suas máscaras, que cospe na sua cara as verdades que você se recusa a enxergar. Está no conselho afiado de uma Pombogira, que te ensina a se desejar antes de implorar pelo desejo alheio. Eles te escutam, te orientam sobre aquela vaga de emprego, te dão um norte naquela confusão sentimental, limpam um pouco o cascalho do seu caminho.
Mas preste atenção: a fila atrás de você é grande. Sua dor é legítima, mas não é a única no salão. A caridade aqui é esse tempo, essa energia, essa palavra que te chacoalha e te coloca de pé. É um empurrão, não um serviço de babá em tempo integral.
O problema começa quando a sua conveniência tenta transformar esse ato de amor em uma comanda aberta.
Achar que a Umbanda tem a obrigação de resolver, de graça, um problema que demanda uma intervenção profunda, um trabalho específico, um tempo que extrapola o da gira, é de uma ingenuidade que beira a má-fé.
Um jogo de cartas não é “só dar uma olhadinha”. É o estudo de uma vida, a energia de um médium, a responsabilidade de ser um tradutor do sagrado. Uma consulta particular com seu Exu de confiança, um trabalho de desmanche, uma quebra de demanda… isso envolve elementos. Envolve a garrafa de cachaça que Exu vai usar, o cigarro de qualidade, a pólvora, as velas que não se compram com poesia. Envolve o tempo e o corpo do médium sendo dedicados exclusivamente a você.
Energia, matéria e tempo custam. O aluguel do terreiro, a conta de luz, a farinha para o padê, nada disso brota no chão por obra da fé.
É muito bonito postar textão no Instagram dizendo que “a Umbanda é 100% caridade”. Soa nobre. Rende likes. Mas nos bastidores, a realidade cobra o seu preço. E quem paga a conta para que você receba seu passe de graça é o dirigente e os médiuns da casa.
A Umbanda não é a lata de lixo espiritual onde você despeja os cacos depois de ter se ferrado em outras bandas. Não é o plano B para quando o orçamento do “milagre” em outro lugar estourou.
A caridade da Umbanda é a porta aberta, a mão estendida na corrente, o conselho que ilumina a escuridão. Ela acontece ali, no coletivo, no tempo sagrado da gira. O que passa disso, o que exige exclusividade, o que demanda material e um mergulho profundo na sua questão, é trabalho. E trabalho, meu amigo, desde que o mundo se entende por gente, tem seu valor.
Os dirigentes precisam parar com o medo de serem claros. E os consulentes, com o vício de serem pedintes. Respeite o sagrado, o tempo alheio e o trabalho de quem mantém aquela porta aberta para você.
A maior caridade que você pode praticar é ter bom senso. O resto é usar a fé como muleta. E na Umbanda, meu caro, a gente aprende a andar com as próprias pernas.
Axé.