A herança bakongo nas Macumbas Cariocas e a gênese ancestral da Umbanda e Kimbanda
A chegada dos povos Bakongo ao Brasil, forçada pela escravidão, não resultou na aniquilação de sua cultura e espiritualidade. Pelo contrário, essas tradições se adaptaram, se hibridizaram e floresceram em novas formas, lançando as bases para as religiões afro-brasileiras.
As Macumbas Cariocas
Muito antes da formalização da Umbanda no início do século XX, existia no Brasil um universo espiritual vibrante, profundo e resistente, manifestado nas chamadas “Macumbas Cariocas“. Embora o termo “macumba” tenha sido e ainda seja frequentemente usado de forma pejorativa, ele designava rituais que eram a base das práticas religiosas afro-brasileiras da época. A principal origem desses rituais, conforme estudos, está ligada aos povos Bantu, cujas práticas e ritualísticas influenciaram grande parte do que se via nas Macumbas Cariocas e, posteriormente, na maioria dos terreiros umbandistas. A prática de “receber o Santo” (incorporar entidades), por exemplo, já era comum nas Macumbas Cariocas e persiste na Umbanda.
Figuras como Luzia Pinta, Pai Gavião e Juca Rosa são exemplos de personagens silenciados pela história oficial, mas que atuaram como precursores e mantenedores dessa espiritualidade ancestral nas senzalas, quilombos e quintais das periferias, através de práticas como os Calundus e “giras coloniais”. Os calundus Bantu, por exemplo, frequentemente focavam no culto a um único nkisi.
A presença dos Nkisi (Inquices) e a reinterpretação de elementos religiosos africanos no Brasil
A cosmovisão Bakongo forneceu uma “gramática” fundamental para as religiões afro-brasileiras. Os Nkisi (ou Inquices), divindades da natureza no candomblé de rito Congo-Angola, equivalentes aos Orixás iorubás e Voduns, foram criados pelo Deus supremo Nzambi. O conceito de nkisi como um “receptáculo” para uma entidade espiritual é central. Nomes de Nkisi como Aluviá/Pambu Njila, Nkosi, Ngunzu, Kaviungo, Nsumbu, Kitembu, Kaiango, Matamba, Kisimbi, Ndanda Lunda, Mikaia/Kaitumba, Nzumbarandá e Nvunji, e seus domínios, revelam a conexão com as forças naturais e a experiência humana.
No Brasil, os espíritos Kongo foram identificados e sincretizados com Orixás iorubás e santos católicos, um processo também observado em Cuba no Palo Monte. Um exemplo notável dessa reinterpretação é a origem de Exu e Pombogira. Figuras como Aluvaiá, Bombogira e Mpambu Njila (que significa “rua” e “cruzamento” em quicongo/quimbundo) foram ressignificadas como o “homem da rua” e, posteriormente, divididas em categorias masculinas e femininas, com Pombogira derivando de Bombogira.
Os pontos riscados são outro elemento crucial de herança Bakongo. Esses diagramas sagrados, feitos com giz especial (pemba), servem como assinaturas de guias espirituais e são usados para invocar espíritos e manipular energias. Sua composição, com símbolos geométricos, setas e cruzes, reflete influências tanto Kongo quanto católicas. A conexão entre o Dikenga dia Kongo e os pontos riscados é profunda: o Dikenga, com sua estrutura de cruz dentro de um círculo, representando os quatro momentos do sol e a jornada da alma, é o modelo para muitos pontos riscados. A cruz no Dikenga simboliza a interconexão entre o mundo físico (Ku Nseke) e o mundo espiritual (Ku Mpémba), com a linha vertical representando a ligação entre Deus e o homem, e a linha horizontal a barreira entre os mundos. Os pontos riscados, ao serem traçados no chão com pemba, criam um “ponto sagrado” onde a pessoa se posiciona entre a vida e a morte, invocando o julgamento de Deus e dos ancestrais. As setas nos cosmogramas indicam o movimento das almas e a comunicação entre os mundos.
O sincretismo religioso como estratégia de sobrevivência e continuidade
As religiões africanas no Brasil, incluindo as de matriz Bantu, absorveram elementos do catolicismo e das religiões indígenas. Esse sincretismo não foi uma mera fusão, mas uma estratégia vital de sobrevivência e continuidade cultural diante da repressão colonial e do tráfico de escravizados. Ao se apropriarem da religião católica, os africanos e seus descendentes garantiram a persistência de suas tradições ancestrais, muitas vezes de forma “invisível” dentro da estrutura dominante.
Os calundus, cultos afro-brasileiros primitivos, são exemplos dessa adaptação, com os calundus Bantu frequentemente focando no culto a um único nkisi. A presença duradoura do “rei e rainha Congo” e das Irmandades de Nossa Senhora do Rosário e São Benedito são símbolos dessa raiz linguística e cultural Bantu que se apropriou da religião católica para sobreviver. Essa persistência “invisível” da espiritualidade africana demonstra que a ancestralidade da Umbanda e Kimbanda reside na adaptação resiliente e criativa de princípios espirituais africanos centrais em um ambiente hostil. O sincretismo, nesse sentido, atuou como um véu, permitindo que os sistemas espirituais africanos continuassem a existir, preservando sua essência para as gerações futuras.
A Cosmovisão Bakongo na cultura brasileira atual (linguagem, culinária, arte, etc.)
A herança Bantu é um pilar central da formação do Brasil, permeando diversas esferas da cultura nacional. No campo linguístico, grande parte do vocabulário do português brasileiro tem origem Bantu, especialmente do quimbundo, uma das línguas nacionais de Angola (ex: “cachimbos”, “cochilo”). Dialetos derivados do Bantu, como a cupópia em São Paulo e a calunga em Minas Gerais, ainda sobrevivem. A influência vai além do vocabulário, atingindo a pronúncia, sintaxe e gramática, com o “pretuguês” sendo uma expressão dessa profunda marca africana.
Manifestações culturais como a capoeira e o jongo são também heranças diretas dos povos Bantu. A capoeira, por exemplo, é uma expressão social que incorpora elementos africanos como círculo, dança, música, rituais e símbolos, e reflete a cosmovisão invertida da linha Kalûnga, onde os praticantes se invertem para emular os ancestrais e buscar poder do reino ancestral. O termo “samba” deriva da palavra Bantu semba, que se refere a um movimento coreográfico de toque de umbigo, e o lundu é outra dança de origem angolana que influenciou o samba. O próprio termo “Candomblé” provavelmente deriva da palavra Bantu kandombele, que significa dança com tambores.
Na culinária, a influência Bantu é vasta, com pratos como canjica, mocotó, mucunzá, caruru e quebebe tendo origem angolana. Ingredientes como quiabo, inhame, maxixe, azeite de dendê e pimentas foram trazidos da África, e receitas como feijoada, acarajé e vatapá têm forte influência afro-brasileira. Os terreiros de matriz Bantu, por sua vez, garantiram a presença e a continuidade das “cosmodinâmicas” Bantu no Brasil.
Elementos da Cosmovisão Bakongo e sua repercussão no Brasil
Kalunga
- Significado na Cosmovisão Bakongo: Força suprema, energia cósmica que impulsiona o “tempo cósmico” (Tandu Kiayalangana) e a formação de tudo no universo. Também a linha que separa o mundo físico do espiritual.
- Repercussão/Manifestação no Brasil: A força vital e o mistério do sagrado que permeiam o universo e a existência; a fronteira entre os mundos. Conceito de força vital e energia presente em todas as coisas, base da espiritualidade afro-brasileira; a linha Kalunga como portal entre vida e morte.
Dikenga dia Kongo
- Significado na Cosmovisão Bakongo: Cosmograma que representa o ciclo da vida (nascimento, amadurecimento, morte, retorno) e a jornada do Sol; um mapa interpretativo do mundo e do tempo cíclico.
- Repercussão/Manifestação no Brasil: Base para a compreensão do tempo e da existência cíclica, da ancestralidade e da transformação; a origem dos pontos riscados. Influência na circularidade de rituais, na crença no retorno dos ancestrais e na interconexão entre os mundos; os pontos riscados como assinaturas e portais espirituais.
Muntu
- Significado na Cosmovisão Bakongo: Ser humano como “Força Solar” ou “Sol Vivo”, dotado de um sol interno e inteligência, parte integrante do cosmos.
- Repercussão/Manifestação no Brasil: A valorização do ser humano como portador de força vital e o reconhecimento da ancestralidade viva. Ênfase na individualidade e poder inerente de cada ser, e na continuidade da vida após a morte física.
Nkisi (Minkisi)
- Significado na Cosmovisão Bakongo: Divindades da natureza, equivalentes a Orixás/Voduns, receptáculos de entidades espirituais, intermediários entre Nzambi e os humanos.
- Repercussão/Manifestação no Brasil: Entidades espirituais cultuadas na Umbanda e Kimbanda, manifestadas na natureza e em rituais. Os Inquices do Candomblé de Angola, e as entidades (Caboclos, Pretos Velhos, Exus, Pombagiras) que atuam como guias e protetores.
Nganga Marinda
- Significado na Cosmovisão Bakongo: Sacerdotisa capaz de se comunicar com o mundo sobrenatural, ligada a cultos de fertilidade e cura.
- Repercussão/Manifestação no Brasil: O papel central de médiuns e líderes espirituais (pais/mães de santo) na comunicação com o plano espiritual. A prática da incorporação mediúnica e a figura do “sacerdote” como elo entre os mundos visível e invisível.
Mpambu Njila / Bombogira
- Significado na Cosmovisão Bakongo: Conceitos Bakongo relacionados a “cruzamento” e “rua”, entidades associadas a caminhos e movimento.
- Repercussão/Manifestação no Brasil: Origem e ressignificação das entidades Exu e Pombogira na Umbanda e Kimbanda. Exu como guardião dos caminhos e encruzilhadas; Pombogira como sua contraparte feminina, ambos intermediários e protetores.
Pontos Riscados
- Significado na Cosmovisão Bakongo: Símbolos e diagramas sagrados, assinaturas de espíritos, usados para invocar entidades e manipular energias.
- Repercussão/Manifestação no Brasil: Elemento ritualístico fundamental na Umbanda e Kimbanda para identificação de entidades e realização de trabalhos. Desenhos feitos com pemba no chão ou em tabuletas, representando a identidade e o poder das entidades, com sua estrutura cruciforme e cíclica derivada do Dikenga.
Lei Mpemba
- Significado na Cosmovisão Bakongo: Conceito filosófico que descreve o mundo dos mortos (Mpémba) como um espelho do mundo dos vivos, e a força vital como a essência de todo ser.
- Repercussão/Manifestação no Brasil: A compreensão da interconexão entre os mundos físico e espiritual, e a manipulação de energias para fins benéficos ou maléficos. O uso da pemba (giz branco) em rituais como um conduto espiritual e representação do mundo ancestral, e a crença na força e dinamismo dos seres.
Ancestralidade
- Significado na Cosmovisão Bakongo: Os mortos não estão mortos, mas vivem além da muralha, esperando o retorno à comunidade; conexão contínua com os antepassados.
- Repercussão/Manifestação no Brasil: Culto aos ancestrais e a importância da linhagem espiritual na Umbanda e Kimbanda. A figura do Preto Velho como ancestral sábio, a reverência aos que vieram antes e a crença na continuidade da vida espiritual.
Sincretismo
- Significado na Cosmovisão Bakongo: Capacidade da religião Bakongo de amalgamar diversos credos, incorporando elementos externos sem perder sua essência.
- Repercussão/Manifestação no Brasil: Estratégia de sobrevivência e adaptação das religiões afro-brasileiras no contexto colonial e pós-colonial. Fusão de elementos católicos (santos, orações) e indígenas com as tradições africanas, criando uma identidade religiosa híbrida e resiliente.