Antes de tudo, quero deixar claro que neste texto estou colocando a MINHA OPINIÃO sobre o que é a Quimbanda, ou seja, não possuo uma verdade única, nem determino o que é certo ou errado em casas X, Y ou Z. Trago apenas minha visão baseada em livros, artigos, pesquisas e um pouco, bem pouco, de vivências como convidado em casas de Quimbanda. Esclarecido isso, vamos ao texto.
Para entender os pilares da Quimbanda, tentando buscar o mais próximo a raiz africana (no qual estudo para interpretar melhor a Umbanda), precisamos olhar para os conceitos e entidades que formam a base da cosmologia Bantu-Bakongo, que foram trazidos pelos africanos escravizados e que, ao longo do tempo, se adaptaram (sincretizaram) e se manifestaram de novas formas no Brasil, dando origem à Quimbanda que conhecemos hoje.
É importante ter em mente que existem pilares da cosmologia Bantu-Bakongo que influenciam a Quimbanda, mas que atualmente não é algo absoluto para o culto.
Nzambi Mpungu é o Criador, está no topo da espiritualidade tradicional Bantu. Ele é a fonte primordial de toda a existência.
Kalunga é o limiar entre os mundos e a força da transformação. Além de ser considerado Nzambi em algumas tradições Bantu da África Central, Kalunga é um conceito cosmológico fundamental que representa a origem da vida, uma força de movimento e mudança, e o limiar entre o mundo físico (Ku Nseke) e o mundo espiritual (Ku Mpémba). É a linha ou rio que no cosmograma Dikenga, conecta os dois mundos, espiritual e material, por onde as almas transitam no ciclo da vida, morte e renascimento (por isso o cemitério é uma kalunga). Essa transição entre os mundos é vital para a atuação que entendemos hoje dos Exu e Pombogira.
Os Nkisi e Bakulos (ancestrais) são forças espirituais com toda a sabedoria ancestral, sendo os Nkisi muitas vezes ligados à natureza, que podem ser contidos em objetos e manipulados por quem realmente é especialista, pois representam a manifestação de poderes e energias no mundo. Já os Bakulos, são vistos como seres que continuam a influenciar o mundo dos vivos, oferecendo proteção e sabedoria, exigindo retribuição. A própria figura de Exu e Pombogira na Quimbanda, pode ser vista como uma forma de espíritos ancestrais e forças da natureza que atuam no limiar entre os mundos, lidando com as complexidades da vida humana, assim como os Nkisi e Bakulos faziam na África.
É sempre bom lembrar que não existe coisa de céu e inferno, bem e mal, prêmios para quem fizer coisas boas e castigos para quem não fizer. Isso é uma visão Cristã!
“Nossa, mas tudo isso de texto e até agora não falou nada da Quimbanda que é conhecida hoje” – Sim, ainda não cheguei nesta parte, pois gostaria de deixar bem claro a visão africana antes de entrar no sincretismo que temos hoje.
A Quimbanda, assim como a Umbanda, o culto aos Orixás e tudo que parte de uma matriz africana, é muito complexo e filosófico, sendo marcado por diversidades e resistência cultural.
A palavra “Kimbanda” tem sua origem na língua Kimbundu, significando “curador” ou “xamã”. No Brasil, o termo evoluiu para “Quimbanda”, um conceito religioso afro-brasileiro com raízes na mitologia Bantu. Historicamente, sacerdotes africanos de Angola e do Congo, são conhecidos como “Kimbanda” ou “Nganga”, que foram transformados pelos colonizadores europeus como “feiticeiros” e praticantes de “magia negra”. Essa reinterpretação, baseada nos conceitos europeus de bruxaria e práticas mágicas, contribuiu para a percepção negativa da Quimbanda.
Assim como no caso da Umbanda e do Candomblé, a Quimbanda teve seu sincretismo, ao contrário das duas citadas que tiveram sincretismo forte do catolicismo, a Quimbanda recebeu uma interpretação mais contemporânea europeia, afinal, os escravizados não vieram só para as américas, e na europa não havia apenas cristãos. Desta forma, a Quimbanda passou a ter uma roupagem diferente das características africanas, trazendo algumas potências como trindade e um chefe supremo.
A trindade na Quimbanda
Seguindo essa tradição reinterpretada, a Trindade Maioral é frequentemente representada pelas potências Lúcifer, Belzebu e Astaroth. Essa tríade simboliza, para muitos praticantes e estudiosos, três aspectos primordiais do universo: Céu, Cosmos e Terra, assim como o ciclo da existência, o poder e a manifestação da força mágica. Em termos simbólicos, esta trindade não corresponde à trindade Cristã, mas manifesta o poder máximo, a rebeldia contra dogmas e a mediação entre diferentes planos existenciais, sendo uma expressão do poder de transformação do feiticeiro, o cruzamento das forças positivas e negativas que geram movimento no universo, polaridades que fazem parte do universo, e não um como algo bom e outro como ruim.
Vale lembrar que algumas vertentes têm como trindade Exu, Pombogira e Exu Mirim. Assim como outras não tem trindade, apenas Maioral como Bakulo.
Quem é Maioral?
Vejo em muitos podcasts essa pergunta: Quem é, ou o que é Maioral?
Maioral, na Quimbanda, é compreendido como o chefe supremo, arquétipo do poder máximo e centralizador das energias. Seu conceito varia conforme a vertente, em algumas, é o Exu Maioral (às vezes, sincretizado a figuras como Baphomet, Lúcifer ou apenas “chefe dos chefes”), em outras, se assume como a concentração das energias de todos os Exus e Pombogiras, simbolizando a união dos polos masculino e feminino, positivo e negativo, material e espiritual. Baphomet, por ter uma imagem popularizada, é uma representação simbólica de Maioral, afinal, a imagem de Baphomet criada por Eliphas Levi demonstra uma figura de equilíbrio, da união dos opostos e da transcendência dos tabus, não levando a ideia Cristã de Diabo, mas sim a um ponto de força cósmica e inominável. Portanto, Maioral é tanto a soma dos antigos deuses demonizados pela cultura dominante, como a representação da liberdade e da recusa dos dogmas opressores.
Obs.: Vale lembrar que Lúcifer, não é o mesmo Lúcifer da ideia cristã!
Significado e filosofia
A Quimbanda se dedica ao trato com Exus e Pombogiras, que são entidades ligadas às encruzilhadas, comunicação, sexualidade, resistência, defesa e o individual de cada pessoa, atuando como mediadores entre o mundo material e o mundo espiritual, mas sem se limitar à simples ideia de “bem vs mal”. Exu não é o diabo, nem demônios cristãos, mas uma força de movimento e equilíbrio cósmico. Muitos ritos envolvem a busca por justiça, proteção, prosperidade e solução de conflitos, sendo a Quimbanda um culto espiritual totalmente focado nas necessidades reais dos adeptos.
Existem diversas vertentes da Quimbanda, algumas buscam ser mais tradicionais, influenciadas pelas culturas Bantu/Congo (mesmo que nesta tradição africana não exista Exu e Pombogira), até as roupagens mais recentes, que tem como princípio a magia, elementos da Goetia e simbolismos “diabólicos” como resistência ao racismo, colonialismo e a intolerância religiosa.
A Quimbanda nada mais é que um culto marginalizado, um culto que aceita todos os excluídos e que engloba tudo aquilo que é desconfortante para os outros. Mas, não é por ser um culto marginalizado, que ele é um culto de caridade, não funciona assim, até porque, magias e tudo o que foi passado no texto tem custos, mas isso é um assunto para outro dia.
Enfim, essa é a MINHA VISÃO sobre a Quimbanda! Acredito que ficou claro que não existe atualmente uma Kimbanda mais raiz, levando em conta que as que eu conheço, cultuam Exus e Pombogiras, mesmo que tratados por reinos, por trindades etc., trabalham com Exus e Pombogiras, algo que não existia na cosmovisão Bantu. Exu veio aparecer muito tempo depois, com os escravizados da Nigéria, trazendo Òrìsà Èsù (orixá Exu) para dentro das senzalas brasileiras. Os Bantu cultuavam ancestrais, muitos utilizando a Mbanda com a cura material e espiritual através das ervas, folhas e pós, e a Kimbanda com a cura material e espiritual através da incorporação ou orientação de espíritos ancestrais.
A Quimbanda não tem uma codificação única! Seus fundamentos variam entre terreiros, linhas iniciáticas e regiões do Brasil. Seu estudo é rico e qualquer descrição deve ser feita com respeito à experiência própria das comunidades envolvidas.